A festa dos santos reis… do rádio: um exemplo de relato crítico

Maria Ignez Novais Ayala e Marcos Ayala

A folia de reis é uma dança dramática que expressa a religiosidade popular de comunidades tradicionais brasileiras. Em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro são muitos os grupos existentes em vários municípios.

Tivemos a oportunidade de participar de três festas e de assistir a apresentações de diferentes grupos em festivais e mostras de folclore ou cultura popular nos anos 1970 e 1980, que ficaram em nossa memória e acervo. Vamos exemplificar com o que vivenciamos nas festas, sendo que duas ocorreram em bairros de São Paulo e outra em no sítio de uma dupla sertaneja que tinha um programa no rádio.

Vou escolher para comentar, aqui, a que ocorreu no sítio de Arujá, em 09/01/1976, de que dispomos de duas fitas gravadas e digitalizadas (fitas 053 e 054 do Catálogo), pois, como verão, tem características diferentes das promovidas devido a promessas em comunidades tradicionais. O relato desta festa foi escrito em 1976, logo depois da observação direta e se manteve inédito. É deliberada a ironia em alguns momentos para destacar talvez a condição mais popularesca do que popular deste contexto. Além do texto datilografado, encontramos um envelope com algumas anotações desenvolvidas neste texto. As fotos foram feitas em slide, que sofreram a ação do tempo, com alteração de cor e fungos, mas foram recuperadas através de digitalização de Maria Ignez Novais Ayala recente.

A FESTA DOS SANTOS REIS… DO RÁDIO

Marineis Novais[1] e Marcos Ayala

A Festa dos Santos Reis vem acontecendo há seis anos, na zona rural do município de Arujá, SP, numa capela erguida em louvor aos Santos Reis. Esta festa é parte de uma promessa, feita pela dupla sertaneja “Moreno e Moreninho” − ‘’A dupla mais ouvida do Brasil”−, e neste ano se realizou no domingo seguinte ao Dia de Reis.

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No local, enfeitado com arcos de bambu e uma infinidade de bandeiras do Brasil (substituindo as tradicionais bandeirinhas de papel), encontravam-se o palanque coberto, barracas de sanduiches, de bebidas e de diversões (o que, sem dúvida, assegurou um grande lucro aos organizadores, uma vez que havia lá mais de mil pessoas).

O público provinha de vários locais. Moradores da Serra do Itapeti, Mogi das Cruzes, Biritiba Mirim, Biritiba Ussú, Guarulhos e São Paulo – São Miguel Paulista, Ipiranga, Cangaíba etc.

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Aproveitando o acontecimento, houve um afluxo de ambulantes vendendo suspiros, maçãs-do-amor, fatias de abacaxi, bolos, churrasquinhos-de-gato, balões de gás, discos, fitas cassete, agulhas, retroses e botões e quinquilharias de gêneros diversos. Só faltavam, mesmo, os carnês do Sílvio Santos. Não faltou nem o realejo, embora alterado: um gravador embutido em caixa de realejo apresentando, como diriam alguns, “uma perfeita fusão do moderno e do tradicional”. Modelo semelhante pode ser encontrado nas imediações da Estação da Luz, em São Paulo.

Havia vários gravadores, só que nesta festa as gravações não eram feitas por pessoas estranhas à manifestação, mas por componentes do público e integrantes das Folias de Reis.

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Numa época em que se fala tanto na morte da cultura popular, na substituição de elementos “autênticos” por outros vindos de uma cultura de massa, surgem os gravadores e fitas nas mãos de irmãos de dançadores e de violeiros ou de simples espectadores. Vale dizer que não foi esta a primeira vez que tivemos a oportunidade de observar isto. Está acontecendo em muitos lugares, relacionado a diversas manifestações da cultura popular.

A utilização destes equipamentos é importante em vários aspectos. Possibilita a memorização da sequência inteira da manifestação pelas gerações mais novas, assegurando sua continuidade. Além de preservação é uma forma de lazer, pois estas gravações são constantemente ouvidas pelos integrantes do grupo, familiares, amigos e conhecidos.

Sabe-se que a cultura de massa é veiculada por fitas, discos, rádio, TV, etc. e que procura impor seus valores ou então veicula a cultura popular, na maioria das vezes, alterada através desses meios de comunicação. Se a TV, o rádio e o disco apresentam um produto já feito, acabado, as fitas para gravador nem sempre, pois existem as fitas virgens e nelas se grava aquilo que interessa a seu proprietário. Assim, quando o gravador está na mão dos responsáveis pela cultura popular, serve para manter esta cultura da maneira que ela se apresenta, podendo inclusive se opor à indústria cultural.

Na verdade, eram pouquíssimas as pessoas “de fora”: dois fotógrafos, que colhiam fotos para capas de discos sertanejos e repórteres da Rede Globo, filmando apenas alguns minutos para noticiário da emissora. Compreende-se a rápida passagem da Rede Globo pela festa,  quando se lembra que a dupla tem programa na Rádio Nacional.

Além de Moreno e Moreninho, outras duplas da Nacional e outras emissoras se apresentaram. Na segunda parte da festa, tendo como grande atração “o sanfoneiro do IV Centenário”, Mário Zan. A primeira parte foi reservada às folias e a uma fanfarra, havendo um leilão antes do show de moda de viola. Dada a grande quantidade de duplas, em certo momento não se sabia mais qual a parte mais importante da festa: se as folias, que estão diretamente ligadas aos santos, ou os péssimos violeiros, digo, péssimos violoneiros, já que não havia nenhuma viola, apenas violões adaptados Inclusive os de Moreno e Moreninho). Sem contar a microfonia, que colaborou para a irritação do público.

Se os grupos de foliões fossem considerados pelos organizadores da festa mais importantes que as duplas, o show não teria se arrastado enquanto a Folia de Nova Bonsucesso, de Guarulhos, esperava das 15:30 às 18:00 horas, sem poder dançar na capela, pois, para isso, dependia do consentimento dos “devotos” Moreno e Moreninho.

Tudo isto fez com que a crítica do público, até então contida, viesse à tona. Os foliões só conseguiram permissão para dançar após muitas reclamações, por parte do público e do irmão do responsável pela Folia de Nova Bonsucesso, junto aos organizadores.

Os componentes da folia já estavam exaustos após a longa espera, em pé, sob o sol forte, principalmente os quatro palhaços com o rosto coberto por máscaras de pele de lobo e de carneiro.

Resignados a ir embora sem ter cumprido sua obrigação, os foliões entraram na capela para reverenciar os santos, pois como a dança é uma manifestação popular de religião, quando não se pode dançar, ao menos uma breve oração deve ser feita. Aborrecidos, voltariam para casa, perdendo o dinheiro gasto com o transporte, já que os organizadores da festa não dão auxílio algum aos que ali se apresentam.

Dentro da capela, o público pedia que o grupo dançasse mesmo sem permissão. Uma das manifestações mais decisivas por parte do público foi a do mestre José Alves, proveniente de Mato Grosso, que atualmente se encontra afastado de sua função, pois ainda não conseguiu organizar um grupo em São Paulo. Conversando com o responsável pela Folia de Reis de Nova Bonsucesso, o mestre José Alves insistia:

“Dá ao menos uma cantada. Depois, despede do altar e vai embora. Dá uma cantada e pronto, tio… Ao menos um verso e depois nós vamos embora.”

Momentos depois, desabafou:

“Essa porcariada que a gente tá com o saco cheio de ver, desculpe, mas essa modaiada besta aí…”

Quando alguém se referiu à religião, mestre José Alves, desencantado com a demonstração de “devoção” dos organizadores, respondeu: “A religião, nada… A religião deles é dinheiro!”

Embora para o público as intenções da dupla sertaneja estivessem bastante claras, a filha de Moreno, dentro da capela, tentava provar o contrário, distribuindo justificações e… chaveiros. Segundo suas declarações, a festa é organizada pela dupla Moreno e Moreninho  e seus familiares, sendo divulgada através do programa da dupla na Rádio Nacional.

A reunião de várias folias para esta festa não é tão difícil como em qualquer festa popular, pois os próprios grupos tomam conhecimento pelo programa de rádio e se apresentam dispostos a colaborar com a promessa, Mas a filha de Moreno queria a todo custo mostrar que tudo é difícil:

Se vão ajudar ou não vão ajudar, fica na incerteza. Porque, se tem gente p’ra ajudar, se faz festa. Se não tem, sai como der, não é verdade? Então se vocês colaborassem de chegar mais cedo, “cês” já tinham trabalhado.(…) Tem um ano “procês” pensar, porque nós pensamos, vocês têm que ajudar também. (…) Se não houver colaboração, a gente não aguenta, tá bom?

Resumindo: depois de muita espera e insistência, a folia conseguiu se apresentar e o público pediu bis.

Os fatos mostraram que o público estava lá para ver as folias e não para assistir extensão de programa de rádio. Ficou claro que, para o público, as folias não se encontram no mesmo plano que as modas de viola, pois, enquanto as modas de viola estão mais ligadas à diversão, as folias estão diretamente relacionadas com a devoção, sendo as manifestações mais importantes numa desta de Santos Reis.

Mas se os grupos de dança são mais importantes para o público, não parece ser esta a visão dos “cumpridores daquela promessa” que sequer estavam presentes na apresentação do grupo de Guarulhos.

Apesar de seu sotaque caipira, Moreno e Moreninho parecem desconhecer o princípio religioso que há nas manifestações culturais populares, o que leva a duvidar de que sejam eles reais representantes desta cultura.

São Paulo, 1976

[1] Como Maria Ignez Moura Novais assinava alguns textos naquela época.


Galeria de imagens:

 


 Seleção de áudios:

Sobre o Mestre José Alves:

Sobre o uso de máscaras na Igreja:

“É o primeiro ano que você vem?” Folia de Nova Bonsucesso entra na capela

No caminho do Oriente encontrou os Três Reis Magos cada um como seu presente:

Continuação da Folia de Nova Bonsucesso:

Santos Reis vem visitar:

Despedida e Vivas:

A porta do Céu abriu:

Agradece a promessa/O Santos Reis ta despedindo/Vai deixar recordação

 

Áudios da Festa de Santos Reis no sítio de Arujá em 09 de Janeiro de 1976.

Para mais informações acesse: Festa de Santos Reis Seleção de áudios:

Sobre o Mestre José Alves:

Sobre o uso de máscaras na Igreja:

“É o primeiro ano que você vem?” Folia de Nova Bonsucesso entra na capela

No caminho do Oriente encontrou os Três Reis Magos cada um como seu presente:

Continuação da Folia de Nova Bonsucesso:

Santos Reis vem visitar:

Despedida e Vivas:

A porta do Céu abriu:

Agradece a promessa/O Santos Reis ta despedindo/Vai deixar recordação

 

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Fotos da Festa de Santos Reis no sítio de Arujá em 09 de Janeiro de 1976.

Para mais informações acesse: Festa de Santos Reis