Ouvimos um coco pela primeira vez na Vila das Palmeiras, na região da Freguesia do Ó, bairro da capital de São Paulo, em meados da década de 70, cantado por quatro matriarcas negras, responsáveis pela Festa de Treze de Maio, em louvor a São Benedito e em lembrança da libertação dos escravos, com ladainhas, rezas e danças reconhecidas como de negros — batuque ou samba de umbigada e samba-lenço — de que participavam intensamente. As quatro irmãs tinham idade próxima ou acima dos setenta anos e durante um intervalo da dança, em uma das últimas festas para a qual fomos convidados na casa da mais idosa — Dona Guilhermina — ouvimos um coco antigo que aprenderam quando crianças, provavelmente com o pai nascido na Bahia. A melodia da canção era um lamento que tinha por refrão:
Êh zueira mangabeira não dá mais fulô candeia É cambito de caixa cambito-ri-ri papagaio novo papaga-ri-ri piriquito novo piqui-ri-ri-ri Espirito de santo espiri-ri-ri-ri minha gente venham vê ôlô cantá o meu coco gemedô.
A brincadeira do coco: dança e poesia afro-brasileira na Paraíba
São muitos os dançadores e cantadores de coco na Paraíba, podendoser encontrados em diferentes localidades da capital, do litoral e do interior do Estado. Dançados e cantados, os cocos não contam com estudos recentes rigorosos e sistemáticos que permitam analisar sua diversidade. Por causa das diferenças ocultadas sob essa designação, parece mais apropriado atribuir-lhes um tratamento plural, o que equivale a dizer que sob o mesmo nome podem se revelar mais do que múltiplas formas de uma única manifestação cultural; podem se apresentar diferentes práticas poéticas de mais de um sistema literário.
Mário de Andrade em “A literatura dos cocos”, estudo publicado em Os cocos, refere-se à dificuldade de precisão através de nomenclatura:
Antes de mais nada convém notar que como todas as nossas formas populares de conjunto das artes do tempo, isto é cantos orquésticos em que a música, a poesia e a dança vivem intimamente ligadas, o coco anda por aí dando nome pra muita coisa distinta. Pelo emprego popular da palavra é meio difícil a gente saber o que é coco bem. O mesmo se dá com “moda”, “samba”, “maxixe”, “tango”, “catira” ou “cateretê”, “martelo”,“embolada” e outras. […]
Coco também é uma palavra vaga assim, e mais ou menos chega a se confundir com toada e moda, isto é, designa um canto de caráter extraurbano. Pelo menos me afirmou um dos meus colaboradores que muita toada é chamada de coco.[1]
A poética que se desenvolve atualmente na dança ou na brincadeira do coco (conforme a denominação dos participantes), no que se refere ao canto, a esquemas métricos, rímicos e a aspectos temáticos, tem se revelado distinta daquela encontrada nos cocos cantados por emboladores ou coquistas, isto é, duplas de repentistas que se apresentam diante de um público de ouvintes. Neste último caso, em que os cocos aparecem dissociados da dança, sendo cantados em desafio, os emboladores improvisam seus versos, cada qual utilizando um instrumento de percussão (pandeiro e, hoje mais raramente, ganzá) para marcar o ritmo, que faz fluir a poesia. O confronto se dá de modo a cada coquista procurar ridicularizar mais seu companheiro através de comparações grotescas, provocando o riso da platéia. A maneira como os cantadores de coco se dirigem ao público nem sempre é respeitosa e formal. Basta não receberem o dinheiro no chapéu ou obterem uma quantia pequena daqueles que compõem sua platéia para a ridicularização também se voltar contra o público.
Já nos cocos que motivam e acompanham indissociavelmente a dança, a poesia não obedece aos mesmos cânones de composição. Não estão alicerçados na disputa que granjeia a preferência do público ora para um, ora para outro poeta repentista. A ironia e o grotesco tal qual se desenvolvem nos cocos de embolada apenas cantados ao acompanhamento de pandeiro não são caracterizadores dos cocos cantados durante a dança. Na brincadeira do coco há ironia, há ambiguidade, há momentos de crítica social, mas a construção dos versos e o sentido da poesia é diferente. A poesia, neste caso, configura-se como um dentre vários elementos indispensáveis para o canto e a dança. Nos cocos dançados predomina o coletivo: para que haja a dança é preciso gente para (a)tirar os cocos e para responder dentro da roda de dançadores, gente que toque os instrumentos, gente que saiba os passos que caracterizam a dança e esteja disposta a entrar na roda.
O interesse pelo estudo dos cocos na Paraíba hoje surgiu devido às dificuldades para sua caracterização. As diferenças de contexto, a natureza dos cocos (dança coletiva, canção ou canto em desafio), as várias formas poéticas e a diversidade de nomes (coco praieiro, coco de roda, coco de embolada etc.) às vezes levam a supor que se trata de mais de uma manifestação cultural sob a mesma denominação.
Vários estudiosos assinalam a origem negra dos cocos (africana, para uns, alagoana, para outros), mas não chegam a examinar cuidadosamente os aspectos que dão aos cocos uma identidade cultural afro-brasileira. São fortes as marcas da cultura negra nos cocos, especialmente nos dançados: os instrumentos utilizados, todos de percussão (ganzá, zabumba ou bumbo, zambê ou pau furado, caixa ou tarol), o ritmo, a dança com umbigada ou simulação de umbigada e o canto com estrofes seguidas de refrão desenvolvido pelo solista e pelos dançadores. Esses elementos aparecem também no batuque, no samba-lenço paulista, no jongo, no samba de partido alto, no samba de roda da Bahia.
Ao iniciarmos a pesquisa de campo, tínhamos como objetivos principais reunir depoimentos de coquistas e dançadores, registros da dança e do canto em desafio em seus contextos de produção para, a partir da experiência e das maneiras de avaliar daqueles que estão intimamente relacionados com os cocos, obter informações fundamentais para um conhecimento mais abrangente da situação atual desta manifestação de cultura afro-brasileira no Nordeste. Estes objetivos continuam válidos, pois as informações mais recentes encontradas em livros pouco ou nada nos auxiliam em nossa busca. Já os cantadores e dançadores, ao explicarem em que consiste a dança ou o canto, têm possibilitado a reunião de uma quantidade de esclarecimentos raramente encontrados nas publicações sobre os cocos.
Os dados parciais da pesquisa trazem elementos para uma reflexão sobre as condições desta dança hoje, permitindo-nos verificar: 1) se há desagregação dos grupos de dançadores, a ponto de reduzir o coco a fragmento de cultura; 2) se o coco é caracterizado como “dança de negro”, qualificação que, dependendo do contexto em que surge, pode ter significados antagônicos: ora como rejeição, ora como afirmação de uma identidade cultural. Associada a este último aspecto, tem se imposto a análise dos diferentes tipos de preconceito (étnico, cultural, social etc.) e a verificação das situações e condições que colocam os cocos em relação com outros tipos de dança e de poesia populares e de outras minorias na Paraíba.
Mário de Andrade e os cocos
A documentação sobre os cocos reunida por Mário de Andrade no Nordeste, em contato direto com os cantadores, entre dezembro de 1928 e fevereiro de 1929, complementada pela colaboração de amigos e alunos, antes e depois da viagem, constitui parte significativa de um livro sobre a música popular no Nordeste, Na pancada do ganzá, que ficou inacabado. O convívio com os “tiradores de coco”, em particular Chico Antônio (Pedro Velho, RN) e Odilon do Jacaré (Guarabira, PB), deixou impressões profundas neste escritor sensível à poética popular. Oneyda Alvarenga, em seu estudo introdutório a Os cocos de Mário de Andrade, observa:
[…] Nos 245 Cocos reunidos neste livro, a expressão “na pancada do ganzá”, definidora da função do instrumento como apoio não só do ritmo, mas da invenção músico-poética em seu conjunto, aparece exclusivamente, e sempre heptassílabo completo, nos Cocos de Chico Antônio, que, se não for o dono dela, é sem dúvida a fonte do nome escolhido[…].[2]
Lê-se no início da “Introdução” ao inacabado Na pancada do ganzá:
Este não é um livro de ciência, evidentemente, é um livro de amor. Estarão sempre muito enganados os que vierem buscar nele a sistemática dos fatos musicais e poéticos do Nordeste. […]
O que vale aqui é a documentação que o povo do Nordeste me forneceu. Procurei recolher esses documentos, da maneira, essa sim, mais cuidadosa, mais científica. Segui, na colheita folclórica, todos os conselhos e processos indicados pelos folcloristas bons. Ouvi o povo, aceitei o povo, não colaborei com o povo enquanto ele se revelava. De resto, trabalhos anteriores já tinham me dado certa prática desse pesadíssimo esforço de recolhedor […].
É certo que, depois de realizada a colheita, ela dirigiu em grande parte o caminho das minhas leituras. E destas, surgiram as notas que guarnecem o livro. Mas porém com essas críticas, exemplos, variantes, ligações, não pretendi fazer obra de etnógrafo, nem mesmo de folclorista, que isso não sou: pretendi foi assuntar, atocaiar com mais garantias a namorada chegando. Se acaso algumas constâncias me interessaram mais, se alguma nova eu terei fixado, foi sempre por essa precisão que tem o amante verdadeiro, de conhecer a quem ama. Não tanto pra compreender o objeto amado em si mesmo, como pra se identificar com ele e milhormente poder servi-lo e gozar.[3]
Embora não se considere pesquisador, Mário de Andrade, neste texto citado como em outros escritos, sempre explicita o seu método de trabalho, reconhecendo em seu estudo procedimentos científicos, sempre valorizados por ele.
Pode-se afirmar que o material reunido por Mário de Andrade é, sem dúvida, o primeiro registro sobre os cocos feito com o rigor do método científico, mas conservando marcas da paixão, do carinho e das sensações do escritor nunca ocultadas, quando se tratava da cultura popular brasileira. Como ressalta Oneyda Alvarenga,
[…] Mário de Andrade cercou de todas as garantias informativas tudo quanto fez: anotou lugares, datas, circunstâncias da pesquisa, observações sobre os informantes e a qualidade da colaboração deles; grafou melodias e textos com honestidade paciente, controlando seu trabalho por diversos meios e obtendo assim a maior exatidão atingível fora do registro fonográfico, que aliás, nos idos de 1928, não era recurso ao alcance dos nossos estudiosos e nem mesmo dos de outros países. Realmente, o fruto das pesquisas de Mário de Andrade constitui até hoje o maior e melhor acervo de música folclórica brasileira registrada por um pesquisador sozinho e por grafia musical direta.[4]
O registro dos cocos, iniciado por Mário de Andrade em 1928, ganhou continuidade dez anos depois com a Missão de Pesquisas Folclóricas, do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, expedição iniciada em janeiro de 1938 e concluída em julho do mesmo ano. Os quatro pesquisadores da Missão — Luís Saia, Martin Braunwieser, Benedicto Pacheco e Antonio Ladeira — foram escolhidos por Mário de Andrade (na época, Diretor do Departamento de Cultura e Chefe da Divisão de Expansão Cultural) para fazer uma ampla documentação sobre danças e poética popular no Nordeste e Norte do país.
A equipe, altamente qualificada, recebeu orientação metodológica de Mário de Andrade; de Dina Dreyfus, então Dina Lévi-Strauss, que havia ministrado o Curso de Etnografia[5] no Departamento de Cultura, ensinando, entre outras questões, a utilizar a fotografia, o filme e o fonógrafo como complemento importante às observações diretas em campo; além de instruções minuciosas de Oneyda Alvarenga, diretora da Discoteca Pública Municipal, para a organização do material coletado.
Munidos de aparelhagem de grande qualidade técnica e de formação segura para um desempenho com rigor científico, os integrantes da Missão visitaram mais de trinta localidades em pelo menos vinte cidades na Paraíba, onde permaneceram mais de dois meses, entre 23 de março (quando chegaram três dos integrantes da Missão a João Pessoa) e 30 de maio de 1938. Além da Paraíba, visitaram algumas cidades de outros Estados do Nordeste e Norte: Pernambuco, Piauí, Ceará, Maranhão e Pará, reunindo uma quantidade fantástica de registros. Dentre as manifestações documentadas na Paraíba, através de gravação de discos, fotos, filmes e anotações em cadernetas, estão muitos cocos encontrados em diferentes locais como João Pessoa, Patos, Pombal, Sousa, Itabaiana, Areia, São Francisco e Baía da Traição.
Álvaro Carlini, em Cante lá que gravam cá: Mário de Andrade e a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938, informa:
As coletas da expedição no Estado da Paraíba superaram todas expectativas: cerca de 30 gêneros folclóricos musicais, mais de 700 melodias gravadas distribuídas em aproximadamente 100 discos de várias dimensões; mais de 500 fotografias; cerca de 10 filmes cinematográficos; uma grande quantidade de objetos de fatura popular (ex-votos de madeira, instrumentos musicais, vestimentas características, entre outros), além de uma infinidade de anotações escritas pelos componentes da equipe.[6]
O conhecimento do material reunido por Mário de Andrade e pelos pesquisadores da Missão de Pesquisas Folclóricas foi possível graças ao empenho de Oneyda Alvarenga, que dedicou mais de vinte anos de sua vida à organização dos inéditos de Mário de Andrade e do acervo da Missão e à divulgação de parte do que foi documentado. O acesso a esta documentação, iniciado há sete anos, possibilitou-me a reunião de dados que, associados a informações e estudos de Mário de Andrade organizados por Oneyda Alvarenga em Os cocos e ao vasto acervo constituído através de pesquisa de campo realizada pela equipe sob minha coordenação, permitem bases seguras para o estudo comparativo desta manifestação de música, dança e poesia, através dos registros feitos na Paraíba em diferentes momentos do século XX.
No que se refere aos cocos colhidos pela Missão na Paraíba, pouca coisa foi divulgada. Os estudos de Mário de Andrade, a documentação reunida por ele e os registros feitos pela Missão de Pesquisas Folclóricas constituem, até o momento, a maior amostragem a que tive acesso, sobre os cocos, a qual vem se enriquecendo com os registros atuais efetuados por nossa equipe de pesquisadores.
O viés regionalista e outras formas de estudo
Fora a documentação de Mário de Andrade e da Missão de Pesquisas Folclóricas, o único livro dedicado ao coco na Paraíba é o de Altimar de Alencar Pimentel, O coco praieiro[7]. Embora o título proponha um estudo mais abrangente, o autor limitou-se a estudar a dança encontrada no município de Cabedelo, onde desenvolveu muitos registros e estudos sobre as diferentes manifestações culturais populares ali encontradas. Esta publicação fornece informações gerais sobre a dança do coco com base em parte da bibliografia disponível sobre o assunto e uma antologia de versos colhidos em Cabedelo, complementada por dados sobre componentes de grupos da dança que forneceram os versos reunidos no livro. Trata-se, portanto, de uma abordagem parcial, com o objetivo básico de divulgar a existência da dança em apenas uma localidade do Estado da Paraíba, não se propondo, deste modo, a uma sistematização ampla e criteriosa sobre os cocos.
Os dados mais recentes de que tivemos notícia consistem em fichas de poucos grupos de dançadores de coco, encontradas dentre várias outras de diferentes manifestações de cultura popular no Estado, que constam de levantamento desenvolvido na década de 70, sob orientação de professores vinculados ao NUPPO (Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular) da Universidade Federal da Paraíba.
Além das fichas, algumas informações resumidas aparecem em livros sobre a cultura popular da Paraíba, como a Cartilha do folclore paraibano: escolas do 2º grau, organizada por José Nilton da Silva[8], Paraíba em ritmo de folclore; danças e cantigas, de Dinalva França[9] e Variações do folclore na Paraíba, de Reinaldo de Oliveira Sobrinho[10], mas em nenhum deles há elementos que permitam captar a situação atual dos cocos.
Entre os autores que estudam os cocos, dançados ou apenas cantados, encontrados em diferentes Estados do Nordeste, tais como José Aloísio Vilela, Abelardo Duarte, José Tenório Rocha e Altimar de Alencar Pimentel, apresentam um ponto em comum no que se refere à origem desta manifestação da cultura popular. Todos eles são unânimes em afirmar que o coco possui origem alagoana, tendo daí se difundido por toda a região, sofrendo aqui e ali determinadas modificações quanto ao modo de apresentação, seja em relação à dança ou ao canto. Suas teses parecem-nos pouco convincentes, dada a ausência de rigor na explicitação das fontes, sejam elas escritas ou orais, resultantes de investigação bibliográfica ou de observação direta.
Os trabalhos refletem uma forte tendência de abordagem calcada em especulações que mais parecem preocupadas em encontrar uma origem dentro da região (no caso, Alagoas), o que demonstra um viés regionalista, em alguns casos com matizes ufanistas que muito guardam de provinciano e ideológico.
Admitindo a importância da influência negra recebida pelo coco, José Aloísio Vilela, em O coco de Alagoas, inicialmente apresentado em 1951 como Memória ao I Congresso Brasileiro de Folclore no Rio de Janeiro e depois publicado em livro, também atesta, de forma implícita, a origem alagoana dessa manifestação popular de canto e dança, na medida em que a relaciona com as práticas culturais dos negros do Quilombo de Palmares, hoje região inserida no Estado de Alagoas. Deve-se lembrar, no entanto, que na época em que existia o Quilombo de Palmares a divisão territorial era outra, não havia o Estado de Alagoas e sim a Capitania de Pernambuco, de grande extensão.
Este livro de Vilela, como os dos demais autores mencionados acima, também se torna pouco convincente por não indicar as fontes a partir das quais extrai suas conclusões. Vejamos:
Depois de inúmeras investigações, recolhi recentemente em Viçosa (Alagoas) uma tradição que vem firmar definitivamente a origem negra do coco.
Diz esta tradição de que tomei conhecimento através de um velho proprietário do Distrito de Chã Preta, que o coco foi inventado pelos negros dos Palmares.
[…] os negros sentavam-se no chão, colocavam o duro coco seco sobre uma pedra e batiam com outra até que ele rachasse.
A grande quantidade de negros empenhada neste serviço provocava nas pedras uma zuada [SIC] enorme que se misturava com os seus costumeiros alaridos.
E em meio a estas barulhentas reuniões, alguns começavam a cantar, outros levantavam-se e davam início a um forte sapateado e os demais uniformizavam a pancada das pedras para acompanhar aquele estranho ritmo que surgia.
E os negros renovavam sempre a brincadeira e a coisa virou costume, pois a quebra do coco terminava sempre em cantiga e em dança.[11]
Como é possível constatar pelo trecho acima, o autor não relaciona a figura do “velho proprietário” com o fato por ele narrado, nem sequer informa se essa tentativa de caracterizar o coco como atividade vinculada ao trabalho (que se configura como canto e dança de trabalho, mais parecendo uma justificativa em forma de lenda) foi encontrada através deste único informante ou se é reiterada por outros.
Resumindo, observa-se que Vilela, assim como os demais autores citados, não se preocupa em adotar um método que permita uma continuidade de estudo, que permita acompanhar a história da manifestação cultural, verificando as possíveis transformações.
Apesar das restrições aqui apontadas, sobressai, como ponto positivo nos trabalhos referidos, o interesse revelado pelos autores em apresentar substancial repertório de cocos, embora incorrendo nas mesmas falhas, no que concerne à explicitação das fontes.
Já o procedimento de Mário de Andrade é bem diferente do adotado pelos autores mencionados. Em O turista aprendiz[12], edição organizada por Telê Porto Ancona Lopez, aparecem referências a Chico Antônio, cantador que encantou Mário de Andrade na década de 20, quando este passou pelo Nordeste. Nestes escritos, como em outros reunidos no já citado Os cocos, Mário de Andrade se preocupou em ser fiel ao descrever o material por ele colhido, precisando a maneira como teve acesso aos textos, lugares e pessoas envolvidos.
A manutenção dos nomes dos artistas populares, bem como dos dados sobre eles (local de origem, em que vivem, formas de trabalho etc.) nos trabalhos escritos ou nas anotações de campo, permite que, em momentos futuros, novos pesquisadores venham a retomar os caminhos abertos por outros anteriormente. Foi o que aconteceu com Chico Antônio, que, em 1979, três anos após a publicação de O turista aprendiz, é redescoberto por Deífilo Gurgel, pesquisador do Rio Grande do Norte e, a partir de então, vários estudiosos procuraram o cantador, já idoso, para entrevistas e nova documentação (gravações em disco, em programas de televisão, vídeos, filmes). Exemplo disso são o número de Estrada Nova[13], dedicado ao Projeto “Chico Antônio e seu meio” e a “Entrevista com Chico Antônio” de Raimunda de Brito Batista, de 1980, que integra sua dissertação de Mestrado, Vida do cantador; o texto e a pesquisa de Mário de Andrade, defendida em 1985 e posteriormente publicada em livro[14].
A situação atual dos cocos na paraíba
Ao iniciarmos a pesquisa em maio de 1992, tínhamos referências de grupos de dançadores de coco em três bairros de João Pessoa e em três municípios: Cabedelo, Lucena e Baía da Traição. Em poucos meses multiplicavam-se as informações de datas e locais onde haveria a dança ou a apresentação dos coquistas.
Extrapolamos os limites iniciais e conseguimos, dividindo os integrantes da equipe em vários grupos, registrar depoimentos e cocos em Santa Luzia, Pilar, Utinga (município de Mulungu), Guarabira, Vertente e Caiana dos Crioulos (município de Alagoa Grande), Várzea Nova e Forte Velho (município de Santa Rita), bairros de Monte Castelo e Camalaú, Praia do Jacaré e Praia do Poço (município de Cabedelo), Fagundes (município de Lucena), Jacaré de São Domingos (próximo à Baía da Traição, município de Rio Tinto), Praia de Jacumã e Guruji (município do Conde), além de diversos locais do município de João Pessoa (Torre, Bairro dos Novais, Alto do Céu, Porto de João Tota e Praia da Penha). Dispomos de informações sobre grupos de dança e cantadores de coco em muitas cidades, que ainda não foram contactados.
Até o momento, foram gravadas em fitas cassete aproximadamente cento e cinquenta horas de cocos acompanhados da dança e cocos de improviso, de depoimentos de dançadores, de cantadores de embolada e de “tiradores” ou “atiradores” de coco, como são denominados os responsáveis pelos versos durante a dança, além de muitas horas de registros em vídeo, a partir dos quais foi produzido na Universidade Federal da Paraíba A brincadeira dos cocos, vídeo de 18 minutos, dirigido por Elisa Maria Cabral, uma realização do Projeto Integrado Literatura e memória cultural: fontes para o estudo da oralidade e do Laboratório de Estudos da Oralidade do Curso de Pós-Graduação em Letras da UFPB[15].
As informações disponíveis, fruto da pesquisa de campo e da organização dos dados, indicam a existência de cocos (dançados ou apenas cantados) em muitas cidades da Paraíba e do Nordeste. Há diferenças marcantes entre a poética dos cocos apenas cantados e a daqueles encontrados na dança. A pesquisa tem permitido verificar as variações dos cocos, através do estudo dos contextos em que são encontrados, dos depoimentos de dançadores e cantadores, dos registros sonoros e em vídeo, cotejados com dados disponíveis na pequena bibliografia sobre a dança.
A brincadeira do coco tem sido encontrada no espaço urbano da capital e de cidades do interior da Paraíba, na área litorânea de maior ou menor densidade populacional em que é grande a concentração de pescadores e trabalhadores rurais de usinas ou de plantações de coco, na zona rural de cidades do interior, em assentamentos de trabalhadores rurais, em comunidades negras isoladas e em aldeias indígenas. Em algumas localidades apenas existe regularmente na memória de ex-cantadores ou ex-dançadores, como presenciamos na Praia da Penha, município de João Pessoa.
Não há calendário fixo para a ocorrência da dança, mas, quando ocorre, é em ambiente festivo, como os dias dos santos de junho (São João e São Pedro), de julho (Sant’Ana), janeiro (Santos Reis), dos santos padroeiros de cidades e povoados, em fins de semana, à noite, nas horas de folga do trabalho e em eventos políticos, a convite de candidatos que se servem das manifestações populares como atrativo para seus interesses eleitoreiros.
Quando se busca o entendimento do que é a brincadeira do coco através de seus cantadores e dançadores, vão surgindo peças de um grande quebra-cabeças, que revelam, entre fios da memória, a maneira como constróem a sua história, que se vincula intimamente com as suas vidas, com a história de seus versos, de seus cantos, de seus passos. Com a convivência acentuada, vai se revelando a história oculta de um coco ou outro, o que motivou sua criação, quem fez os versos, quem escolheu a melodia. Relativiza-se a idéia corrente de anonimato e vão surgindo elementos que permitem considerar em que consiste o improviso. Ora significa criação a partir de certas circunstâncias, ora a maneira criativa de inserir um verso da tradição em situações presentes, que faz o já conhecido surgir como algo novo porque se encaixa em uma ocorrência nova, o que lhe atribui um novo sentido.
Vários cantadores associam a dança a um tempo longínquo; alguns mencionam o tempo da escravidão onde se alternam dor, sofrimento com castigos e trabalho forçado, e a alegria das danças.
Seu Manuel Ventinha, mestre cantador do Bairro da Torre, João Pessoa (PB), vincula a dança a um tempo e local distantes, imprecisos e depois tenta estabelecer um primeiro lugar para o coco no Brasil:
[…] Esse coco de roda, exatamente, primeiramente isso veio da banda da África, né? Isso é negócio de africano, né? É por isso que eu digo, primeiro Estado onde foi inventado o coco de roda foi a Bahia, porque a Bahia foi lugar de mais escravos. Acho que sim, no início do Brasil, acho que foi, né?[16]
Sua explicação não pára aí. Tomando como exemplo os passos miudinhos que caracterizam sua maneira própria de dançar, comenta:
Eles pegavam um jabu com couro de gato, de maracajá e batendo e dançando dentro da senzala, né? Com aquele fogo feito na senzala e é com que eles se divertiam […] E não podiam dançar com uma corrente no pé, não é, passado o cadeado o camarada não podia se largar pra dançar. Eles tinham somente que fazer aquele passo.[17]
Já Dona Lenira, cantadora e dançadora do coco de Guruji, município do Conde (PB), moradora em um assentamento rural, aguardando o título de posse do pedaço de chão em que seu avô, seu pai, seus tios e irmãos trabalharam, militante na luta pela terra onde sempre trabalhou e viveu duramente, também dá sua explicação:
O coco muitas vezes é um recado. Era um recado, né, que… antigamente, eles não podiam… eles como escravos eles não podiam desabafar com o senhor e eles desabafavam em lamentos. De noite, em noites,eles ali brincando e eles desabafavam.[18]
Muitos dos cocos por ela cantados guardam a lembrança de confrontos e dificuldades:
Lengo tengo lengo tengo
eu morro de trabalhar
de dia tô na enxada
de noite tarrafear
Dona Lenira
—
Samba negro
branco não vem cá
se vier pau
há de levar
Negro racha os pés
de tanto sapatear
de dia tá no açoite
de noite pra batucar
Dona Lenira, ao refletir sobre os cocos, os associa a sua vida e a de sua comunidade, argumentando:
Quer dizer que é a luta… é a mesma luta que continua hoje… no diaa- dia. A gente de dia tá na luta e de noite forma um coco e vamos batucar, vamos dançar, vamos se divertir, né?
E com orgulho afirma:
[…] É uma brincadeira que vem dos negros, escravos, somos descendentes desse povo e não podemos deixar cair a tradição.
Hoje em Guruji, ao lado dos versos que lembram situações de trabalho difícil em outros tempos, os cantadores e dançadores dão o seu recado, alertando para questões presentes. Vejamos alguns cocos:
Já estou cansado
de trabalhar no roçado
mas estou desanimado
não vejo nada ir pra frente
Trabalhador
não é pra ficar contente
que o Plano do Real
veio acabar com a gente
—
Eu moro lá na Agrovila
mora Pedro e João
José e Maria
só não tamos mais satisfeito
porque o prefeito
não bota energia
—
Seu Aloísio
no Conde fez um turismo
botou praia de nudismo
pros banhistas se banhar
Deu em Manchete
de Norte para o Sul
quem quiser ver gente nu
vá em Tambaba olhar
–
Há também espaço para versos líricos que destacam momentos de doçura e de harmonia com a natureza:
De que lado sai o sol
sai de Ponta do Coqueiro
Ô sol ô lua
ô que vento traiçoeiro
São muitos os temas e motivos do coco. Da mesma maneira, são muitos os tipos de coco, conforme a classificação daqueles que participam da brincadeira. Denominações que surgem devido à maneira de tocar, de dançar, em uma ou em outra localidade. São muitos os nomes, os detalhes, os mistérios, envolvidos neste universo pouco conhecido da brincadeira. Recentemente encontrei uma profusão de cocos solicitados, dançados e cantados por entidades que costumeiramente baixam em alguns rituais afrobrasileiros encontrados na Paraíba. Aqueles que já não fazem mais parte desse nosso mundo de comuns mortais são recebidos alegremente no espaço sagrado do ritual religioso e festejam dançando, cantando cocos que rememoram o trabalho difícil do tempo de cativeiro, instaurando magia, momentos de intensa vivacidade que os mantêm em contato, reduzindo distâncias, aproximando mundos diversos, matando a saudade, em grande solidariedade entre vivos e… encantados.
Esta é uma outra situação do coco. Cocos costumeiramente encontrados na brincadeira, quando aparecem na gira (como é denominada a dança nos cultos afro-brasileiros), ganham feitio de oração, isto é, de ponto cantado:
Uma visita
de bom coração
Me dê um abraço
e um aperto de mão
—
E lêlê ô acauã
Odete
galo canta de manhã
carneiro quando se molha
se deita e sacode a lã
—
Fui tomar banho
no Rio da Curimã
às cinco horas da manhã
eu avistei a donzela
Olhei pra ela
meu coração palpitou
se ela fosse o meu amor
daria palma e capela
Cantadores, dançadores e a brincadeira
Dentre os dançadores e cantadores contactados, a grande maioria se encontra na condição de trabalhador pobre e parcela significativa em situação de pobreza absoluta, o que ocorre com a maioria dos negros brasileiros e seus descendentes.
Tanto em bairros da periferia da capital, quanto em cidades do interior da Paraíba, a equipe de pesquisadores encontrou dançadores, mestres e cantadores, morando em casebres de taipa, muitos sem luz elétrica, sem água tratada, alguns sem cadeiras ou tamboretes, sem panela de metal (ferro, alumínio ou lata), demonstrando o estado de privação em que (sobre)vivem.
Problemas de moradia (não ter posse da terra, não ser proprietário da casa) são comuns, a ponto de integrantes da equipe terem ouvido, em uma das localidades visitadas, um cantador dizer “Fulano é o nosso proprietário”, referindo-se ao dono da terra.
Sem as garantias mínimas de cidadania é muito difícil ter autonomia para desenvolver atividades culturais independentemente de interferências de grupos de poder — proprietários rurais e políticos.
Através dos relatos dos entrevistados e dos pesquisadores, foi possível detectar a que ponto a dança é discriminada e por que muitos jovens, embora saibam, não querem dançar o coco.
Dançadores e cantadores revelam-se magoados por presenciarem a perda de interesse pela dança, tanto pelos mais velhos, quanto pelos jovens. A dança muitas vezes é depreciada por quem não integra o conjunto de dançadores e cantadores, como atividade de “preto velho, sem vergonha, pobre e cachaceiro”. Com medo de discriminação, várias pessoas que apreciam a dança e o canto afastam-se dos cocos.
Muitos dos entrevistados demonstraram em seus relatos uma valorização do passado do tipo “antes era mais animado; hoje ninguém se interessa”. A valorização do passado é procedimento muito comum em relatos sobre cultura, e em particular, sobre cultura popular. No caso dos cocos, a manifestação passa por um processo de mudança. Destes entrevistados, vários se submeteram à migração interna. Ao se deslocarem de uma cidade para outra, lá encontraram pessoas com histórias semelhantes, que também tinham as mesmas preferências culturais. Neste sentido, os cocos serviam como elemento integrador e também como componente de uma afirmação de identidade cultural. O mesmo não ocorre com os componentes da nova geração. Os filhos e netos destes dançadores, além de não terem vivido experiência semelhante de migração, bem ou mal, se encontram integrados (no emprego, na escola, nas atividades de lazer hoje comuns a todos os jovens na zona rural ou urbana, tais quais, assistir a programas de TV, ir a forrós, acompanhar as danças da moda como lambada, funk etc., ter preferência por músicas tocadas no rádio e repetidas infindavelmente nos aparelhos de som particulares). Quando participam das atividades culturais populares como a brincadeira do coco, desenvolvidas nas comunidades onde moram, muitos jovens reagem temendo, depois, a ridicularização feita por colegas da escola. Aceitam participar de apresentações públicas, quando dançadores e cantadores são caracterizados como grupo folclórico, o que possibilita, às vezes, ver suas imagens veiculadas pela televisão.
Dançadores e cantadores, de todas as idades, adoram ser fotografados e filmados. Também não se mostram inibidos diante dos gravadores. Sentem-se valorizados. Quando há alguma forma de registro, em especial fotos, os jovens enchem a roda. Há um desejo muito grande de ser visto, de não ser anônimo. Mas no dia-a-dia, sem pesquisadores por perto, o interesse parece não ser o mesmo em todas as localidades visitadas.
Quando os cocos são tidos como dança de velhos, fica difícil a reprodução do sistema cultural; se os jovens não participam, continuamente, de alguma forma (aprendendo a dançar, a cantar, a tocar), prejudica-se a continuidade da manifestação.
Há também uma preferência pela ciranda em várias localidades visitadas. São raros os grupos que só dançam cocos, sem alterná-los com a ciranda, dança muito popular na Paraíba e no Nordeste. Segundo alguns depoimentos, os cocos aparecem depois da meia noite. Antes, só ciranda. Estar oculta em outra dança leva-me a pensar que, em alguma época, a brincadeira do coco pode ter sido reprimida. Abrigados em outra dança, os cocos estariam driblando a repressão (ou, mais recentemente, a discriminação), recurso semelhante ao utilizado pelos rituais afro-brasileiros, que se desenvolviam sob a fachada do catolicismo.
A equipe também encontrou a dança em comunidades negras isoladas e em aldeias indígenas. Na aldeia indígena visitada, os cocos alternavam-se com o toré, com a ciranda e com o forró.
Pode-se afirmar que a brincadeira do coco é dança de minorias discriminadas, por diversas condições: pela etnia (negros, índios e seus descendentes), pela situação econômica (pobreza, às vezes extrema), pela escolaridade (iletrados ou semi-alfabetizados), pelas profissões que exercem na sociedade (agricultores com pequenas propriedades ou sem terra, assentados rurais, pescadores, pedreiros, domésticas, copeiras de escolas). A dança passa por diferentes formas de interferência, qualquer que seja seu contexto, porque é difícil qualquer autonomia cultural em região de forte controle político como o Nordeste, onde se aguçam as formas de dependência devido à pobreza extrema da população. Aqui, o pobre, costumeiramente, é submetido a alguém ou a algum grupo de poder, salvo raríssimas situações.
No que se refere à relação entre sujeitos, estabelecida pela pesquisa de campo, há ainda algumas questões que merecem ser destacadas.
Cultura, experiência, solidariedade, memória
A proximidade com as pessoas que participam intensamente da brincadeira do coco, tocando instrumentos, tirando cocos (isto é, propondo os versos mais tradicionais ou criando novos que vão ampliar o repertório existente) e ensinando a resposta para aqueles que estão dançando em roda, permite apreender múltiplos componentes desse universo da oralidade em que experiência, solidariedade, alegria são fundamentais.
Às vezes é possível descobrir ocorrências em que cantadores e dançadores se valem da escrita para manter sua literatura oral. Anotar em um papel qualquer um coco desconhecido para não esquecer e somar aos já familiares ou colecionar o repertório em cadernos manuscritos é um recurso para salvar do esquecimento, quando a memória (e a dos companheiros) fraquejar com a idade ou ainda como instrumento para auxiliar outros, mais novos, que queiram cantar cocos.
O ato de usar a escrita como apoio da memória oral é procedimento que permite a seguinte avaliação: aqueles que participam do universo da oralidade têm consciência de que a escrita é um poderoso instrumento e que pode servir para resguardar o oral do esquecimento. Pode parecer paradoxal mas, neste caso, a escrita é posta a serviço da oralidade.
Esta proximidade, mencionada ainda há pouco, que permite certos achados, não se consegue apenas estando presente nos dias de festa ou de entrevista. Ela é construída por atos dos pesquisadores que, ao mesmo tempo em que vão entrando na intimidade das pessoas, vão se mostrando, vão se deixando conhecer no convívio acentuado: dizemos por que estamos ali, o que pensamos sobre os mais diversos assuntos, quando interrogados, o que pretendemos fazer com as imagens, com as gravações, com os estudos e mostramos os resultados ainda em suas etapas preliminares, principalmente os audiovisuais, através de sessões de vídeos nos lugares onde os cantadores e dançadores moram. Deixamos cópias de fitas cassete gravadas em festas, reproduções de fotografias, dos vídeos. É bom lembrar que este retorno não é habitual entre pesquisadores de campo. Em geral chegam e rapidamente levam o que querem, devassando vidas e práticas culturais. Alguns pagam pelas informações.
Nós preferimos construir uma relação de troca com base em valores de uso a nos rendermos ao modelo da estrutura de mercado, em que tudo resulta em mercadoria. Pesquisar do jeito que escolhemos é trabalhoso e obriga a ir em sentido contrário ao tempo do relógio. Rendemo-nos a outras temporalidades marcadas pelas relações entre pessoas, por afinidades que se estabelecem por um convívio que se constrói não apenas pela necessidade do conhecimento científico e, seguramente, sempre saímos enriquecidos. Impossível sair dessa experiência sem marcas, quando se é movido por um desejo muito grande de entender diferenças culturais, diferentes temporalidades. Em um ambiente de carência onde faltam condições financeiras, soluções para problemas de saúde, educação, moradia e emprego, paralelamente, sobra e é esbanjada uma riqueza em termos de auxílio mútuo, solidariedade, companheirismo nas horas de dor e de alegria. Esta alternância entre carência e abundância, entre o que falta e o que sobra nem sempre resulta em tensão explicitada pela palavra. Esta solidariedade muito grande, fundada em vida comunitária com fortes laços de afetividade que se constrói no dia-a-dia difícil, no mutirão cotidiano da vida em que “uma mão lava a outra”, é responsável pela força que supera as dificuldades e refaz o ânimo através da alegria dos momentos festivos em que se dança, em que se ri, em que se diverte para aguentar as novas dificuldades de sempre. É esta resposta alegre que mantém vivos muitos dos brasileiros e dá o troco à dominação pela própria insistência em se manterem em pé, rindo. Por outro lado, esta atitude de solidariedade constante revela a disposição de sempre incluir os estranhos em seu convívio. Esta hospitalidade ao outro é a porta por onde passa também a dominação. Isto porque a cultura popular tem como traço distintivo a inclusão. Como é extremamente participativa, devido à vida comunitária que lhe garante a existência, esta cultura popular, ao incluir, traz para seu interior formas de dominação. Acomoda, vamos dizer assim, traços das culturas dominantes a seu modo. A cultura hegemônica, fundada no universo da escrita, por sua vez, tem traços diametralmente opostos à vida comunitária: o individualismo e, por extensão a solidão, o tédio, a angústia. Em um movimento intenso e obsessivo de exclusão do que contrasta com seus propósitos, os agentes da cultura hegemônica investem na homogeneização, forma extrema de eliminar as diferenças. Estão sempre anunciando a morte da cultura popular ou então decretando o seu desaparecimento. A escola, uma das instituições mais poderosas da cultura hegemônica, longe de ser um espaço democrático para a reflexão sobre as diversidades culturais de um país, oprime, ridiculariza aqueles que são filhos de pais analfabetos, participantes desse universo da oralidade. Mascara a dominação com o aparente interesse pelo “folclore”, reinventando nas aulas de português, de forma redutora, a tradição de contar histórias. De rico canal de transmissão de experiências, o narrar popular fica limitado a temas engraçadinhos ou a técnicas didáticas para tentar moldar o futuro leitor de histórias escritas. Nas aulas de educação física e de educação artística se faz a invenção da tradição[19] de danças populares em soluções estereotipadas, que se cristalizam em esboços mal feitos de passos e gestos que no contexto original levam décadas para se construir. Esta falsa inclusão, este procedimento hipócrita quanto às diferenças culturais mal encobre o indisfarçável desejo de excluir o que é diferente e o que segue um outro caminho e outra organização que não aquela ditada pela cultura dominante.
Estudar a literatura popular na escola, na universidade só tem sentido, a meu ver, se for para estabelecer um confronto com esses mecanismos de exclusão típicos da cultura hegemônica. Só tem sentido se for para sairmos dessa experiência menos ignorantes e mais humanizados.
É este conhecimento que buscamos no Laboratório de Estudos da Oralidade. Procuramos mostrar, em nossos ensaios, o que apreendemos e aprendemos, tentando extrair sempre que possível uma duração que beira o poético, sem perder a percepção crítica desta realidade, que, à primeira vista, parece igual, repetida, mas é intrigantemente complexa. E esses versos, esses cantos, esses gestos, essas falas, esses rostos, esses flagrantes aparentemente fugazes instalam-se em nossos trabalhos, estão incrustados muito fundo em cada um dos participantes do grupo de pesquisa. Cada qual carrega, à sua maneira, esses ecos que são muito fortes e para sempre.
[1] ANDRADE, Mário de. Os cocos. Prep. introd. notas Oneyda Alvarenga. São Paulo: Duas Cidades; (Brasília): INL, Fundação Pró-Memória, 1984, p. 347 – grifos meus.
[2] ALVARENGA, Oneyda. “Explicações”. In: ANDRADE, Mário de, op.cit., p. 10.
[4] ALVARENGA, Oneyda. “Explicações”, idem, ibidem, p. 17-18 – grifos de OA.
[5] Conforme resumo das aulas do Curso de Etnografia instituído pelo Departamento Municipal de Cultura e dirigido pela Sra. Lévi-Strauss, acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga.
[6] CARLINI, Álvaro. Cante lá que gravam cá: Mário de Andrade e a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938. Dissertação de mestrado – Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1994, p. 333.
[7] PIMENTEL, Altimar de Alencar. O coco praieiro; uma dança de umbigada. 1. ed. João Pessoa: Caravela, 1964; 2. ed. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1978.
[8] SILVA, José Nilton da, org. Cartilha do folclore paraibano: escolas do 2º grau. João Pessoa: Secretaria da Educação e Cultura, 1988.
[9] FRANÇA, Dinalva. Paraíba em ritmo de folclore, danças e cantigas. João Pessoa: Secretaria da Educação e Cultura do Estado da Paraíba, 1988.
[10] OLIVEIRA SOBRINHO, Reinaldo de. Variações do folclore na Paraíba. João Pessoa, s.d.
[11] VILELA, José Aloisio. O coco de Alagoas. Maceió: Museu Théo Brandão; UFAL, 1980, p. 17 – grifos meus.
[12] ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Org. Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: Duas Cidades; Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976.
[13]Estrada Nova, Instituto Nacional do Folclore/FUNARTE, janeiro de 1983.
[14] ANDRADE, Mário de. Vida do cantador. Ed. crítica Raimunda de Brito Batista. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Villa Rica, 1993. (Obras de Mário de Andrade, v. 25).
[15]A brincadeira dos cocos. Direção de Elisa Maria Cabral. Coordenação da Pesquisa de Maria Ignez Novais Ayala. O vídeo recebeu o prêmio Banco do Nordeste do Brasil na XXIV Jornada Internacional de Cinema da Bahia. Salvador, 1997.
[16]Apud O perfil dos coquistas, de Josane Cristina Santos Moreno, ensaio aqui publicado.
[17] Josane Cristina Santos Moreno, no ensaio referido, dá mais informações sobre este cantador.
[18] Esta citação, como as demais, encontra-se no acervo do LEO (Laboratório de Estudos da Oralidade), formado basicamente por documentação obtida em pesquisa de campo entre 1992 e 1997.
[19] O termo é de Hobsbawm e tomado de empréstimo a partir da introdução ao livro A invenção das tradições (org. por Eric Hobsbawm e Terence Ranger, trad. Celina Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.)